O alerta vem de todas as partes. Segundo estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU), a escassez de água afeta mais de 1,2 bilhão de pessoas no mundo e reverter o quadro é chave no combate à pobreza. Há volume suficiente para atender às necessidades, mas isso requer alteração drástica na forma como o recurso fornecido pela natureza é usado, administrado e destinado. Tarefa nada fácil, a contar pelas projeções dos cientistas: se nada mudar, o planeta enfrentará déficit hídrico de 40% até 2030, resultante do aquecimento global e do crescimento da população e da economia.
Na indústria, a demanda deve crescer 400% em três décadas, e assim, de acordo com o Fórum Econômico Mundial, as crises de oferta consistirão nas maiores ameaças aos negócios, já percebidas hoje como fator mais impactante do que os desastres naturais.
Diante dos riscos, a gestão da água toma maior espaço na agenda das corporações e desperta as estratégias para lidar com os efeitos, já em curso e os futuros, das mudanças climáticas. Se antes as empresas restringiam a questão à área operacional, vendo o recurso hídrico como um insumo igual aos outros para fazer a fábrica funcionar, hoje já ampliam o olhar para fora dos muros. "Começam a centrar esforços na bacia hidrográfica em que estão situadas, dando escala a ações para a matériaprima não faltar", diz Annelise Vendramini, pesquisadora do Centro de Estudos em Sustentabilidade (GVces), da Fundação Getulio Vargas (FGV), que desenvolve métodos para análise de riscos e oportunidades na gestão da água junto a empresas.
Agropecuária, mineração, indústria, geração de energia e abastecimento público são os mais vulneráveis, segundo ela. Dois fatores preocupam: "Os custos associados à cobrança pelo uso dos rios em áreas de maior escassez, que tendem a crescer em função da maior demanda, e a redução das licenças para captação, resultante da menor disponibilidade hídrica por conta da
erosão e outros impactos ambientais".
Em dez anos, o número de outorgas concedidas pela Agência Nacional de Águas quase triplicou. Mas somente 46, entre as centenas de bacias hidrográficas estaduais e interestaduais, têm sistemas de cobrança, totalizando R$ 294 milhões em 2015, além de R$ 185 milhões pagos
exclusivamente pelo setor hidrelétrico.
Em Botucatu (SP), a unidade da Duratex intensiva em recurso hídrico para fabricar chapas de fibra de madeira ainda não é cobrada pelo uso do rio Pardo, mas já se prepara para cenários futuros aumentando o reúso da água. E até 2025 pretende cortar pela metade o consumo por hectare na irrigação dos plantios de eucalipto que abastecem as linhas de
produção.
"Não basta maior eficiência no uso, mas ter a bacia hidrográfica saudável", afirma Mário Pino, gerente de desenvolvimento sustentável da Braskem, que investiu R$ 280 milhões em tecnologias de reúso e redução do consumo hídrico, diminuindo em 41% os efluentes líquidos um marco na indústria química. A empresa integra um movimento do Pacto Global da ONU para a redução de perdas na distribuição de água antes de chegar às fábricas e residências, por meio de monitoramento de vazamentos e instalação de tubulações novas o que também traz oportunidade de negócio para a fabricante de resinas plásticas, matéria prima dos encanamentos.
Para evitar conflitos e pressão sobre os mananciais, o objetivo é, até 2035, aumentar em 20% a capacidade de oferta hídrica da Bacia Piracicaba, Capivari e Jundiaí, que abastece 74 municípios incluindo parte da Região Metropolitana de São Paulo. Para Pino, "sem o apoio empresarial, os governos não irão muito longe nas soluções contra a escassez".
De acordo com o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, será por meio dos recursos hídricos que as empresas mais sentirão os efeitos do aquecimento global. Os sinais já são percebidos. Pesquisa do Carbon Disclosure Program (CDP), organização global que reúne 643 investidores institucionais com ativos de US$ 67 trilhões no total, constatou que grande parte das centenas de companhias consultadas em 2016 está ciente dos riscos relacionados à água e dos impactos que poderão atingir a receita e gerar mudanças substantivas nos negócios. Mas quase metade não faz a gestão ou monitora de forma abrangente o consumo.
Desta forma, os riscos hídricos estão se materializando nos negócios, somando no ano passado prejuízo de US$ 14 bilhões, conforme dados reportados pelas empresas. No Brasil, de acordo com o relatório, a multinacional de automóveis General Motors pagou pela água US$ 2,1
milhões a mais, em 2015, devido à seca, além dos custos de energia elétrica, que subiram US$ 5,9 milhões.
"A percepção dos impactos aumenta, mas faltam ações concretas e abrangentes nas cadeias", aponta Juliana Lopes, diretora do CDP para a América Latina, com uma constatação: "Existe a cultura de medir o consumo de água, mas não os riscos".
Apesar das perdas, 73% das empresas olham para o recurso hídrico, se bem gerido, como oportunidade de mercado. De acordo com o estudo, 24% das atividades de redução de carbono relatadas pelas companhias dependem da disponibilidade de água.
A agenda do carbono predomina no debate ambiental. Mas, para cientistas, o paradigma está mudando: diante do quadro de escassez, "a gestão de florestas tende a se voltar mais para a questão da água do que para a do carbono", destaca Aurelio Padovezi, gerente de florestas do WRI Brasil, citando artigo científico sobre o tema, publicado neste ano pela Global Environmental Change. Para ele, a atribuição de preço permite que o recurso hídrico seja melhor administrado e integrado aos negócios. "Já não é um problema de longo, mas de curtíssimo prazo".
O Banco Mundial contabiliza globalmente perdas anuais equivalentes a 6% do Produto Interno Bruto (PIB) por conta do estresse hídrico. A crise de abastecimento de 2014 na região mais populosa e desenvolvida do país acendeu o sinal vermelho agora
acionado de novo por conta da seca que castiga Brasília, sede do 8º Fórum Mundial de Água, em 2018.
"Se os vinhos da Califórnia deverão melhorar e os da França piorar devido às mudanças na colheita resultantes do clima modificado, o certo é que a situação é complexa e já atinge a todos, exigindo das empresas um olhar estratégico para os nexos entre água, redução de carbono e energia", analisa Marina Grossi, presidente do Conselho Empresarial Brasileiro para o
Desenvolvimento Sustentável (Cebds).
O setor financeiro começa a incorporar o risco. "Créditos liberados para operações intensivas em água poderão fracassar", diz. As restrições darão abertura a oportunidades de mercado com novas tecnologias, como é o caso
de 14 soluções mapeadas para a maior eficiência, com potencial de economizar 14% do recurso hídrico retirados pela indústria e 3% da usada pela agricultura. "A água está no centro do desenvolvimento sustentável e o alvo agora é trabalhar suas conexões com temas como clima, energia, alimento, gênero, inovação, biodiversidade e vários outros", afirma Grossi.
FONTE: http://www.valor.com.br/brasil/4908680/risco-iminente